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Exclusiva com Jelena Todorovic, técnica de basquete: “Conhecimento não tem gênero”

Jelena Todorovic entra na ligação de vídeo da casa dos avós, na pequena vila bósnia de Osjecani. A sérvia de 31 anos está visitando a família antes de viajar para o Brasil, onde assumirá, nos próximos dias, o cargo de técnica do Fortaleza Basquete Cearense.

Nos últimos dias, o nome de Jelena tomou conta da mídia por se tornar a primeira mulher técnica de um time masculino no basquete brasileiro. A atenção é boa, claro, mas Jelena tenta se desvencilhar da questão. Ela não quer ser conhecida como uma técnica mulher. Quer ser conhecida como uma técnica.

“Conhecimento não tem gênero. Se você tem conhecimento, vai ter resultados. A minha vida inteira eu ouvi ‘ela não pode fazer, ela é mulher, ela é jovem’. Isso me motiva dez vezes mais. Por favor, me falem isso. Me digam isso”, diz ela em entrevista exclusiva ao 365Scores.

Em quase 1h30 de conversa, Jelena falou sobre a infância difícil em meio à guerra e a paixão pelo basquete. Riu, sorriu, se divertiu e se emocionou, com lágrimas nos olhos, ao falar sobre o trabalho com jovens.

Nunca na minha vida dei esse tipo de entrevista profunda e exclusiva“, revelou.

Jelena fez questão de ressaltar, orgulhosa, suas raízes sérvias. Nascida em Belgrado, cresceu em meio à guerra civil iugoslava, nos anos 1990, e viajou para a Austrália com a família, como refugiados, quando tinha apenas sete anos.

Lá começou a jogar basquete e, ao mesmo tempo, treinar os dois irmãos mais novos enquanto os pais saíam para trabalhar. A paixão pelo esporte cresceu e tomou conta da vida de Jelena.

Jelena Todorovic no Toronto Raptors
Jelena Todorovic no Toronto Raptors – Arquivo pessoal

De sorriso fácil, começando a conversa com “bom dia, obrigado“, tentando ensaiar as primeiras palavras em português, ela se diz pronta para o desafio no Brasil e garante que o jogador que esperar facilidade por ser treinado por uma mulher terá problemas.

Sou super competitiva. Minha alma é balcã. Sou apaixonada, talvez até agressiva. Fora da quadra, sou calma. Mas no treinamento e na quadra, espero o melhor. As pessoas ficam confusas. Se acham que vão ter uma técnica mulher e ela vai ser legal, tranquila… ah, eles estão errados“, avisa.

Confira a entrevista exclusiva com Jelena Todorovic:

Como foi o seu começo no basquete?

Eu cresci no meio da guerra, com muitas dificuldades. Minha cidade foi bombardeada, vivíamos ouvindo as sirenes dos aviões, muitas vezes não havia o que comer. Era caótico. Meu pai era do exército.

Em 2000, quando eu tinha 7 anos, imigramos para a Austrália, como refugiados. Meus pais não tinham dinheiro para nos fornecer atividades extracurriculares, e comecei a jogar basquete lá. E ao natural eu comecei a treinar meus irmãos e primos mais jovens. Eu tomava conta dos meus irmãos mais novos enquanto meus pais trabalhavam. Ficávamos horas na quadra.

Em 2002, fiquei muita orgulhosa com o título mundial de basquete (Iugoslávia venceu os EUA nas quartas de final e a Argentina na final). Foi algo muito inacreditável e emocionante. Me lembro de ir à escola no dia seguinte e falar “ei, meu país é campeão mundial!”.

Em 2010 voltamos a morar na Sérvia, em Belgrado, e passei a jogar no Estrela Vermelha. Eu era armadora, tenho 1,75m de altura, mas sabia que não seria uma jogadora de alto nível.

Parei de jogar quando tinha 17, 18 anos, ao mesmo tempo em que começaram a aparecer muitas oportunidades para começar a treinar. Viajei aos Estados Unidos para fazer um estágio na NBA. Foi um período muito difícil financeiramente e pessoalmente, pois meus pais se divorciaram, mas eu queria seguir meus sonhos.

O começo sempre é difícil financeiramente para técnicos jovens. É uma longa jornada.

E como teve início a carreira de técnica?

Dos EUA voltei para a Austrália, onde tive uma chance com o técnico americano Joey Wright, que é meu maior mentor e treinava o Adelaide 36ers. Fui treinadora assistente dele na National Basketball League.

Quando voltei à Europa, entrei em uma academia para treinadores da Euroliga. Conheci o técnico grego Dimitris Itoudis, que me deu a primeira chance em alto nível, como assistente logo na seleção grega! Depois trabalhei com ele no Fenerbahçe e viajei a Europa toda passando por todos os grandes clubes. Aprendi muito com grandes técnicos da Europa e da NBA.

Entrei também para a Euroleague Head Coaches Board Academy, e nos últimos dois anos estive lá, ajudando na formação de técnicos e conduzindo clínicas por todo o mundo, tentando levar o conhecimento do basquete ao maior número de pessoas.

Jelena e Giannis Antetokounmpo
Jelena e Giannis Antetokounmpo – Foto: Arquivo pessoal

Este será seu primeiro trabalho como técnica principal?

Sim, o primeiro de um time adulto. Me sinto muito pronta. Tenho os grandes mentores por trás.
Tive muitas ofertas para seguir como assistente, mas vi o Fortaleza como a grande chance de ser “head coach”. A maioria dos meus mentores me aconselhou a aceitar essa proposta. Seria meu próximo passo de desenvolvimento. Estou ouvindo eles e seguindo meu instinto.

O que você sabe sobre o NBB e o Fortaleza Basquete Cearense?

Nós sérvios respeitamos muito o Brasil. O país tem muita tradição no basquete. Passei a acompanhar a NBB. Acho a melhor liga da América do Sul, com muito potencial. Quero levar o maior número de pessoas para assistir aos jogos, encher o ginásio.

Quero levar o meu estilo. Vou levar um jogador australiano, cujo nome ainda não posso revelar e que treinou comigo no Adelaide 36ers, e meu assistente, Vladimir Dosenovic. Não é o melhor time no papel que vence, e sim o que joga melhor, mais unido.

Quero convidar técnicos da Euroleague para visitar, dar clínicas. Vou levar 1000% da minha paixão e conhecimento. E também quero aprender. O Brasil tem técnicos fantásticos.

Sua contratação trouxe muita atenção pelo fato de ser a primeira mulher técnica no basquete masculino. O quanto você acha que isso pode inspirar garotas e mulheres no Brasil e no mundo?

Uma coisa que você precisa saber: sou uma técnica. Conhecimento não tem gênero. Se você tem conhecimento, vai ter resultados.

Quando cresci, eu não tinha em quem me inspirar, porque ninguém era como eu. Se eu fosse ouvir as pessoas que diziam que eu não poderia fazer algo, eu não estaria aqui hoje. Sou muito teimosa. Não tomo “não” como resposta.

Sou uma mulher sérvia. Passei por muitas dificuldades. O basquete era meu porto seguro. Ninguém vai me dizer que não posso fazer algo.

Se eu puder mostrar a uma garota no Brasil ou no mundo que posso ser um exemplo, já fiz um grande trabalho. Se uma mulher seguir meus passos, é suficiente. Quero deixar um legado.

Jelena e o grego Dimitris Itoudis
Jelena e o grego Dimitris Itoudis – Foto: Arquivo pessoal

E como é o seu estilo na quadra? É calma também ou mais agitada e exigente?

Sou super competitiva. Minha alma é balcã. Sou apaixonada, talvez até agressiva. Penso em basquete 24 horas por dia. Fora da quadra, sou calma. Mas no treinamento e na quadra, espero o melhor.

As pessoas ficam confusas. Se acham que por ter uma técnica mulher ela vai ser legal, tranquila… ah, eles estão errados. Todos têm que ser respeitosos. Sou dura.

A minha vida inteira eu ouvi “ela não pode fazer, ela é mulher, ela é jovem”. Isso me motiva dez vezes mais. Por favor, me falem isso. Me digam isso.

Meu grande ídolo é Novak Djokovic. E ele fala da força mental de superar arenas cantando contra ele.
Sou muito faminta e motivada. Estou pronta.

Quem é o seu jogador favorito?

Aaaah…difícil! (risos) Já trabalhei com grandes jogadores. Gosto de jogadores como Nikola Jokic, Giannis Antetokounmpo, Luka Doncic.

Mas mais do que os jogadores famosos, gosto dos jovens com quem trabalhei e muitas vezes não tinham condições financeiras. Garotos que não podiam pagar pela passagem de ônibus e não tinham uma bicicleta, mas caminhavam duas ou três horas até o treino. Não tinham tênis para jogar.

Lembro de um garoto que não recebia direito a bola. Ele me disse que usava óculos, mas não tinha condições de ter um par extra. Não podia quebrar seus óculos, então jogava sem. Esses são meus exemplos (Jelena se emociona e seca as lágrimas).

Se você pudesse escolher apenas um jogador para levar ao Fortaleza Basquete Cearense, quem seria?

Jokic!

Já sabe algumas palavras em português? Pretende aprender?

Quero aprender português. Está na minha lista de tarefas. Vou começar a dar os treinos em inglês, mas quero me integrar à cultura. Já sei algumas coisas como “rápido, rápido”, de clínicas de basquete que já dei em Fortaleza.

E o que você conhece da cultura brasileira e, em especial, da cearense?

Fortaleza é um lugar mágico. O Brasil é magico em relação a comida, música, cultura. Adoro comida. Os melhores frutos do mar e peixes que comi foram em Fortaleza.

Adoro música. Gosto de cantar, sei tocar piano, mas sou uma péssima dançarina. Mas já aprendi a dançar forró! Sinto que já tenho uma família no Brasil.

Eu cresci ouvindo falar do Flamengo, que joga no Maracanã (Jelena é fã de Petkovic). Cresci na época de Ronaldinho. Era uma grande fã, espero conhecê-lo um dia. Sou grande fã de futebol. Já fui a um jogo do Fortaleza no Castelão e foi espetacular. Certamente irei a um jogo do Flamengo no Maracanã.

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Renato de Alexandrino

Editor-chefe do 365Scores. Jornalista formado na PUC-RS, com mais de 30 anos de experiência em redações. Cobriu in loco as Copas do Mundo de 2010, 2014 e 2018, e as Olimpíadas de 2016. Apaixonado por futebol, surfe e NBA, entre outros esportes.

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